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Como familiares podem ajudar uma pessoa em crise ou surto psicótico e ainda cuidar de si nesse processo...?

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O que é um surto psicótico?

Um surto psicótico é uma condição em que a pessoa perde o contato com a realidade, de forma parcial ou total, por um período de tempo. Isso pode envolver:

  • Alucinações (ver, ouvir ou sentir coisas que não estão ali)

  • Delírios (crenças sem base na realidade, como achar que está sendo perseguido)

  • Pensamentos desconexos ou confusos

  • Mudanças bruscas de humor e comportamento

  • Agitação, medo intenso ou comportamento retraído

Importante: Nem todo surto é violento. O comportamento pode variar entre a paralisia total, isolamento ou intensa agitação.


O que causa um surto psicótico?

Surto psicótico não é frescura, fraqueza ou escolha. Ele pode ser causado por diversos fatores combinados:

Transtornos mentais:

  • Esquizofrenia

  • Transtorno bipolar (em episódios maníacos ou depressivos graves)

  • Transtorno esquizoafetivo

  • Transtornos de personalidade

Uso de substâncias psicoativas:

  • Drogas (maconha em excesso, LSD, cocaína, crack, etc.)

  • Abstinência de álcool ou medicamentos

Situações extremas:

  • Trauma psicológico intenso

  • Estresse agudo

  • Privação de sono


Fonte: DSM-5, CID-11, OMS


Quem pode ter um surto?

Qualquer pessoa com vulnerabilidade psíquica ou predisposição genética, combinada a fatores ambientais e gatilhos emocionais intensos.

O surto pode ser episódico e único, como também pode fazer parte de um transtorno crônico.


Sinais de alerta para familiares

Antes do surto, a pessoa costuma apresentar mudanças perceptíveis:

  • Isolamento repentino

  • Fala desconexa ou acelerada

  • Paranoia (“estão me seguindo”, “tem alguém me observando”)

  • Insônia intensa

  • Mudanças de humor abruptas

  • Olhar vago ou assustado

  • Descuidos com a higiene

  • Comportamento religioso/místico exagerado (em alguns casos)


Esses sinais indicam a necessidade de intervenção precoce. Não espere o surto se instalar completamente.


Durante o surto: o que fazer e o que evitar

O que fazer:

  • Mantenha a calma (mesmo que por dentro esteja com medo)

  • Fale com voz baixa e pausada

  • Evite encostar sem avisar

  • Retire objetos perigosos do ambiente

  • Ligue para o SAMU (192) ou acione apoio médico/psiquiátrico

  • Tente estabelecer contato visual e dizer frases simples como:

    “Você está seguro, estamos aqui com você.” “Vamos buscar ajuda juntos.”


O que NÃO fazer:

  • Não grite, discuta ou force a pessoa a “voltar ao normal”

  • Não a chame de “louca” ou “doida”

  • Não exponha a pessoa publicamente

  • Não tente “racionalizar” com ela, pois delírios não se combatem com lógica

Lembre-se: Uma pessoa em surto não tem dúvidas, apenas certezas. Por isso, não tente argumentos lógicos para tentar trazer a pessoa à realidade.

Se a pessoa tiver um surto de que Deus deu-lhe uma missão, nada fará com que você a convença que não é isso que está ocorrendo.


Após o surto: tratamento e continuidade dos cuidados

  • Atendimento psiquiátrico é fundamental: pode envolver uso de antipsicóticos e acompanhamento contínuo

  • Psicoterapia é recomendada para reconstrução psíquica e emocional

  • Em casos graves ou recorrentes, internação pode ser necessária temporariamente e com respaldo médico


O foco do tratamento não é “apagar o surto”, mas prevenir recaídas e restaurar a funcionalidade emocional e social da pessoa.


A visão da TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental)

A TCC trabalha com a identificação e reestruturação de pensamentos distorcidos e crenças disfuncionais que podem alimentar o surto ou dificultar a recuperação.

Estratégias usadas:

  • Reestruturação cognitiva: ajudar o paciente a questionar a realidade dos delírios ou interpretar de forma mais segura suas percepções

  • Treino de habilidades sociais

  • Psicoeducação para o paciente e para a família

  • Registro de pensamentos e emoções


A visão da Psicanálise

A Psicanálise entende o surto como uma ruptura no aparato psíquico, muitas vezes provocada por conflitos inconscientes profundos e não elaborados.

Freud já descrevia os surtos como “retornos do recalcado”, conteúdos que o ego não consegue mais manter sob controle.

Lacan fala sobre o "inconsciente à céu aberto", como se a barreira neurótica que mantém os traumas, medos e fantasias inconscientes escondidas não existisse.

Foco da abordagem:

  • Explorar a história de vida do sujeito

  • Investigar traumas e vínculos primários (mãe/pai/cuidadores)

  • Trabalhar com o lugar que a pessoa ocupa no desejo do outro


A Psicanálise não trabalha para “calar” o surto, mas escutar o sofrimento e reconstruir o sujeito a partir de sua história e discurso.


O caso Schreber: quando o delírio vira tentativa de sentido

Daniel Paul Schreber (1842–1911) era um jurista alemão respeitado, presidente da Suprema Corte de Dresden. Um homem culto, racional e admirado. Mas, aos 51 anos, algo começou a mudar em sua mente e em sua percepção do mundo.


O início da crise

Após aceitar um novo cargo público, Schreber começou a desenvolver sintomas de insônia severa, agitação mental e ideias obsessivas. Em pouco tempo, entrou em um surto psicótico. Mas, diferente de um colapso visivelmente caótico, seu delírio era extremamente organizado, cheio de detalhes e significados próprios.

Ele acreditava que:

  • Estava sendo transformado em mulher por forças divinas

  • Era alvo de rays (raios sobrenaturais) que transmitiam mensagens telepáticas

  • Deus queria usar seu corpo para redimir o mundo por meio de uma união sexual

  • Espíritos tentavam invadir sua mente


O que a psicanálise vê nesse caso?

Sigmund Freud, ao ler o livro que o próprio Schreber escreveu enquanto internado (Memórias de um doente dos nervos, 1903), entendeu o surto como uma tentativa do inconsciente de reorganizar o ego após um colapso psíquico profundo.

Para Freud, os delírios de Schreber não eram apenas “loucura”, mas uma reconstrução simbólica do mundo interno, uma tentativa (ainda que disfuncional) de dar sentido ao caos interno.

Freud escreveu: O delírio é uma tentativa de cura. O ego se reorganiza criando uma nova realidade, mais suportável que a real.


O delírio como linguagem

Na visão psicanalítica, o surto não é o fim da razão, mas a razão tentando sobreviver quando não há mais chão. Schreber criou, através dos delírios, um sistema religioso próprio, uma lógica que fazia sentido para ele, mesmo que fosse desconectada da realidade objetiva.

Através disso, podemos entender que:

  • A pessoa em surto não está “fora de si” totalmente, ela está vivendo outra versão da realidade e que é muito real para ela

  • O delírio pode conter elementos simbólicos da vida emocional da pessoa, ainda que distorcidos

  • Tentar desfazer o delírio com argumentos lógicos não adianta. É como discutir o roteiro de um sonho com quem ainda está dormindo


Complemento da TCC: onde o pensamento distorce a percepção

Já sob a ótica da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), o caso de Schreber pode ser analisado como um exemplo de crenças centrais disfuncionais extremas: ideias irracionais sobre si e o mundo que se tornaram rígidas e inquestionáveis.

A TCC ajudaria, por exemplo, a:

  • Trabalhar a reconstrução gradual da percepção da realidade

  • Identificar os gatilhos que precipitaram o surto

  • Criar estratégias para reconhecer sinais de recaída

  • Trabalhar com a família para entender que o delírio é real para quem o vive


O que a história de Schreber ensina a quem cuida?

  1. O surto não define a pessoa. Schreber era brilhante e sofreu intensamente.

  2. O sofrimento psíquico profundo pode gerar realidades paralelas. Respeitar essa dor é essencial.

  3. A família precisa aprender a ouvir sem confrontar, acolher sem colapsar, e cuidar sem carregar tudo sozinha.

  4. O tratamento multidisciplinar é o caminho: psiquiatria, psicologia, apoio familiar e, quando necessário, internação.


E quem cuida, também precisa de cuidado

Familiares que lidam com surtos ou crises graves vivem altos níveis de estresse, ansiedade, luto simbólico e exaustão.

É comum sentirem:

  • Medo de um novo episódio

  • Culpa por não terem “feito mais”

  • Raiva e frustração por sentirem que perderam o controle

  • Vergonha (principalmente por conta do estigma social)


Você não precisa suportar tudo sozinho(a). Cuidar de alguém não significa se abandonar. Acompanhamento psicológico para os familiares é fundamental para:

  • Desenvolver estratégias de enfrentamento

  • Reorganizar os papéis familiares

  • Reduzir a culpa e o estigma

  • Promover acolhimento e escuta


Em resumo:

O surto psicótico não é loucura sem sentido. É uma dor profunda que estilhaça a realidade. E, às vezes, como Schreber, a mente tenta juntar os pedaços com delírios. Ouvir com empatia, intervir com cuidado e acompanhar com limites pode salvar vidas, inclusive a de quem cuida.

Lidar com o surto psicótico de alguém que você ama é desafiador, assustador e emocionalmente exaustivo. Mas com informação, apoio e acolhimento, é possível trazer segurança para a pessoa em crise e para quem cuida.

Você não precisa entender tudo. Mas pode aprender a ser apoio sem se anular. Ajudar sem se machucar. Amar sem se sobrecarregar.



E se precisar de um espaço pra cuidar da sua saúde emocional, a psicoterapia está aqui pra você também.


Fontes e Referências Científicas:

  • Bentall, R. (2004). Madness Explained

  • Beck, A. T. (1993). Cognitive Therapy of Schizophrenia

  • Bosa, C. A., & Fonseca, R. P. (2017). Surto Psicótico: uma abordagem clínica

  • Cartilha da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) sobre primeiros socorros psicológicos

  • DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais)

  • Freud, S. (1911). Notas sobre um caso de paranoia

  • Freud, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (D.P. Schreber)

  • Organização Mundial da Saúde (OMS) – CID-11

  • Oyebode, F. (2018). Simptomatologia Psicótica – Guia de Psiquiatria Clínica

  • Schreber, D. P. (1903). Memórias de um doente dos nervos


 
 
 

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