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QUANDO O "NÃO" VIRA CRIME: POR QUE ALGUNS ADOLESCENTES MATAM OS PAIS?

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Nos últimos anos, temos acompanhado com perplexidade casos em que adolescentes tiram a vida dos próprios pais. A pergunta que paira no ar é: “como isso é possível?” Como um filho, criado por essas pessoas, pode cometer um ato tão brutal? Esse tema, por mais doloroso que seja, precisa ser debatido com seriedade, empatia e base científica, afinal, só assim poderemos compreender e prevenir essas tragédias.

Primeiro, é importante dizer: não existe uma única causa. O comportamento violento de um adolescente contra os próprios pais é resultado de uma teia complexa de fatores psicológicos, sociais, familiares e, por vezes, biológicos. Vamos entender melhor.


O que é o parricídio?

O parricídio ocorre quando um filho mata o pai ou a mãe. No Brasil, muitos casos envolvem adolescentes, frequentemente com conflitos impulsivos. Embora o fenômeno seja raro, sua gravidade exige atenção profunda às dinâmicas familiares e individuais.


Desenvolvimento emocional comprometido

Durante a adolescência, o cérebro ainda está em formação, especialmente o córtex pré-frontal, responsável pelo controle de impulsos, julgamento e empatia (MURRAY et al., 2015). Quando esse desenvolvimento emocional é prejudicado por traumas, negligência, ausência de limites claros ou excesso de permissividade, pode haver distorções graves na forma como o jovem lida com frustrações e regras.


Dinâmicas familiares disfuncionais

Famílias onde há violência doméstica, ausência de afeto, inversão de papéis (quando o filho “manda” nos pais), ou pais excessivamente autoritários ou ausentes, podem favorecer o surgimento de conflitos intensos. Em alguns casos, há também problemas psiquiátricos não tratados tanto nos filhos quanto nos pais (ABRAMOVAY, 2012).


Psicopatologias

Transtornos como o Transtorno de Conduta, Transtorno de Personalidade Antissocial ou até traços de psicopatia precoce podem estar presentes. Porém, vale ressaltar: a maioria dos adolescentes com esses diagnósticos não cometem crimes contra os pais. Esses transtornos apenas aumentam o risco, principalmente quando somados a outros fatores.


O que a Psicanálise vê por trás do parricídio?

A Psicanálise entende o ser humano como alguém movido por impulsos inconscientes, desejos reprimidos e conflitos com as figuras parentais. No caso do parricídio, duas obras são fundamentais:

  • Freud e o Complexo de Édipo

Freud, no início do século XX, descreveu no Complexo de Édipo a ambivalência afetiva da criança em relação aos pais: amor e ódio, desejo e culpa. Segundo Freud, todos nós, em algum momento da infância, passamos pelo desejo inconsciente de "eliminar" o pai ou a mãe como figuras que nos impedem de realizar nossos desejos (por exemplo, de atenção ou afeto exclusivo).

Na maioria das pessoas, esse desejo é simbolicamente superado, e a criança internaliza a autoridade parental, desenvolvendo respeito pelas regras sociais e morais.

No parricida, esse processo falha. O adolescente, ao invés de internalizar a lei e respeitar os limites, pode ver o pai ou mãe como um obstáculo real a ser eliminado, e não como um símbolo da ordem e da proteção.

  • Lacan e a Função Paterna

Jacques Lacan atualiza essa visão: não importa apenas o pai biológico, mas o "Nome-do-Pai", ou seja, a função simbólica de trazer regras, limites e organização ao psiquismo da criança.

Se essa função paterna falha (por omissão, ausência emocional ou fragilidade), o adolescente pode:

  • Não reconhecer nenhuma autoridade além de seus próprios desejos;

  • Rejeitar os limites impostos;

  • Buscar romper radicalmente com quem representa a lei, no caso os pais.

Resumindo a visão psicanalítica: O parricídio é a consequência extrema de um sujeito que não conseguiu elaborar o limite e a castração simbólica, permanecendo preso ao desejo de onipotência infantil.


E o que a TCC diz? (Com ênfase na Teoria dos Esquemas)

Na visão da Terapia Cognitivo-Comportamental, e principalmente da Terapia dos Esquemas, o parricídio não surge apenas por pensamentos distorcidos momentâneos, mas por esquemas emocionais disfuncionais profundamente enraizados desde a infância.

Esquemas são padrões emocionais e cognitivos amplos, que moldam como a pessoa vê a si mesma, os outros e o mundo. São aprendidos na infância, especialmente em contextos de relações familiares disfuncionais.

Esquemas que podem favorecer comportamentos extremos:

  • Abandono / Instabilidade: Crença de que as figuras importantes são imprevisíveis e vão deixar a pessoa.

Pode gerar raiva intensa diante da percepção de que os pais estão “contra” o adolescente.

  • Desconfiança / Abuso: Crença de que os outros vão te prejudicar, humilhar ou enganar.

O adolescente pode ver nos pais inimigos a serem combatidos.

  • Privação Emocional: Crença de que nunca terá amor, cuidado ou compreensão.

Gera frustração crônica, ressentimento e comportamentos vingativos.

  • Controle / Submissão: Sentimento de que sua vida é controlada pelos outros e de que não tem direito à autonomia.

Pode gerar explosões de revolta extrema.

  • Grandiosidade / Insuficiência de Limites: Crença de que suas necessidades são mais importantes que as regras.

Aqui surge o perfil narcisista, que não aceita frustração e acredita ter direito absoluto ao que deseja.

Como a TCC e a Terapia dos Esquemas tratam isso?

  • Reestruturando crenças disfuncionais: mostrando que o mundo não gira em torno do desejo imediato do adolescente.

  • Treinando tolerância à frustração: ensinando que a dor emocional pode ser suportada sem atitudes extremas.

  • Desenvolvendo empatia: mostrando o impacto que suas atitudes têm sobre os outros.

  • Trabalhando habilidades sociais: comunicação, resolução de conflitos e estratégias para lidar com regras e limites sem agressividade.


Em resumo: Diferenças nas abordagens

Psicanálise

TCC / Esquemas

Enfoque nos desejos inconscientes e falhas na simbolização da autoridade

Enfoque em pensamentos disfuncionais e padrões emocionais mal formados

Destaca a importância da função paterna como mediadora do desejo e da lei

Destaca como experiências negativas moldam crenças e reações impulsivas

Busca interpretar o inconsciente e ressignificar o desejo

Busca reestruturar pensamentos e desenvolver habilidades práticas

 

Como isso ajuda na prevenção?

Pais e cuidadores, psicólogos e professores podem:

  • Fortalecer o papel de autoridade emocional equilibrada: nem autoritária, nem permissiva.

  • Trabalhar o diálogo e a validação emocional: os sentimentos do adolescente precisam ser reconhecidos, mas seus comportamentos inadequados, corrigidos.

  • Identificar precocemente padrões disfuncionais: comportamentos de crueldade, manipulação ou falta de empatia são sinais de alerta.

  • Buscar psicoterapia: seja pela psicanálise ou pela TCC, o tratamento psicológico precoce pode evitar tragédias.

 

Casos reais ocorridos no Brasil

Caso 1:

Em 21 de junho de 2025, em Itaperuna (RJ), um adolescente de 14 anos assassinou os pais e o irmão de 3 anos enquanto dormiam. O crime só veio à tona em 25 de junho, quando a avó registrou o desaparecimento da família. A motivação: os pais proibiram que ele viajasse para Mato Grosso do Sul para encontrar virtualmente sua namorada de 15 anos.

Usando a arma do pai, guardada embaixo do colchão, ele matou os três e ocultou os corpos em uma cisterna, com sinais de tentativa de destruição de evidências. Em áudios e declarações, alegou ter agido para evitar sofrimento ao irmão. Também pesquisou online como acessar o FGTS do pai falecido.

Ele foi apreendido e internado provisoriamente por 45 dias no sistema socioeducativo.


Por que esse caso choca

  • Família estruturada: sem histórico de violência ou disfunções evidentes.

  • Gatilho aparentemente banal: um conflito sobre um encontro amoroso.

  • Planejamento e frieza: o jovem agiu durante a madrugada, calculando a ação, e busca pelo FGTS, sinais de premeditação e interesse financeiro.

Isso desmistifica a ideia de que apenas famílias problemáticas geram casos graves, pois a violência pode surgir onde menos se espera.


Possíveis fatores psicológicos e explicações

  • Impulsividade e imaturidade emocional: A incapacidade de tolerar frustrações pequenas leva a explosões intensas. Em adolescentes com capacidade limitada de autorregulação, isso pode resultar em ações extremas.

  • Relações virtuais e idealização: O envolvimento com uma parceira virtual desde a infância cria expectativas emocionais não ajustadas à realidade familiar e pessoal, gerando frustração ao ser impedido.

  • Ansiedade de separação e identidade: O jovem pode ter interpretado a proibição como uma violação de identidade e autonomia, e a morte da família como forma de “libertação”.


Teoria psicanalítica

  • Inadequada internalização das figuras parentais: sem vínculo simbólico forte, os pais tornam-se “inimigos” internos facilmente atacáveis.

  • Inexistência de limite edipiano: adolescente não elaborou conflitos com figuras parentais, agindo impulsivamente.

  • Ato como identidade: o homicídio aparece como um ato extremo para afirmar autonomia e marcar ruptura.


Psicologia Cognitivo-Comportamental (TCC)

  • Crenças distorcidas: o adolescente pode ter pensado “me bloqueiam de viver minha vida”.

  • Falta de regulação emocional: ausência de estratégias para lidar com raiva e descontrole.

  • Ações alternativas inexistentes: sem repertório de resolução de conflitos, a violência surge como solução.


Caso 2:

Em 24 de maio de 2024, na Taquara (Jacarepaguá, RJ), um adolescente de 16 anos, filho adotivo de um casal amoroso e sem histórico de violência, matou os pais com um martelo, saiu de casa “para lanchar” e depois incendiou o quarto onde estavam os corpos, confessando o ato às autoridades.

Apesar da aparência de estabilidade familiar:

  • O crime ocorreu após uma simples discordância: os pais não permitiram que faltasse à escola para descansar antes de uma aula de jiu jitsu.

  • Ele foi adotado em 2014, e seus irmãos adotivos não mantinham contato há anos.

  • Vizinhos relataram que a convivência “não era normal”, apesar de o casal ser visto como carinhoso.

Esse cenário mostra que famílias estruturadas podem esconder tensões profundas, negligenciadas até transformarem-se em violência letal.


Possíveis gatilhos e explicações psicológicas

  • Impulsividade extrema: o porquê de o jovem agir de forma tão violenta após “apenas uma discussão”.

  • Adolescência e identidade: busca por autonomia e dificuldades na transição para independência.

  • Aceitação social: o conforto em sair para lanchar mostra um comportamento dissociado da violência cometida.

  • Fracasso na internalização paterna: o vínculo parental não foi suficientemente consolidado, tornando o imaginário dos pais vulnerável à raiva inconsciente.

  • Falha na elaboração do furo edipiano: ausência de simbologia e processamento emocional pode gerar explosões violentas como forma de “marca” ou afirmação poderosa.

  • Crenças disfuncionais: pensamentos como “meus pais me controlam demais” precisam ser identificados e reformulados.

  • Dificuldades na regulação emocional: falta de estratégias para lidar com irritação e frustração imediata.

  • Ausência de treino comportamental: inexistência de habilidades de comunicação assertiva em momentos de conflito.


Prevenção: como os pais podem agir.

Não existe fórmula mágica, mas algumas atitudes podem proteger emocionalmente os adolescentes:

  • Diálogo aberto e envolvente: construam narrativas de vida juntos, inclusive virtuais. Ofereça um espaço seguro e sem julgamentos.

  • Esteja presente emocionalmente: não basta dar comida e escola boa. É preciso ouvir, acolher, conversar e entender os sentimentos dos filhos.

  • Uso de regras com lógica e afeto: explicar motivação por trás de cada decisão, mesmo negativa. Dizer “não” também é uma forma de amor. Crianças e adolescentes precisam de referência, estrutura e regras. Regras claras, mas voltadas ao fortalecimento, não à simples punição.

  • Promoção de habilidades socioemocionais: ensinar regulação emocional, resolução de conflitos, empatia e comunicação assertiva.

  • Monitoramento de relacionamentos virtuais: acompanhar sem invadir, conversar sobre limites e riscos.

  • Atividades conjuntas: fortalecer identidade familiar com momentos de conexão emocional.

  • Captação de sinais de alerta: sinais como isolamento, agressividade verbal, alterações abruptas de humor, agressividade extrema, crueldade com animais, falta de empatia ou prazer em provocar dor devem ser levados a sério.

  • Modelagem saudável de emoções: demonstre como regular emoções (respiração, pausa antes de reagir, linguagem calma).

  • Incentivo ao autocuidado emocional: introdução à meditação, atividades físicas, hobbies não relacionados a dispositivos digitais.

  • Não terceirize a educação emocional: celular, escola ou internet não substituem o papel dos pais.

  • Cuide da sua saúde mental: pais emocionalmente desequilibrados têm mais dificuldade em oferecer uma base segura aos filhos.


Intervenção profissional

Psicanálise

  • Explorar vínculos parentais, formação de identidade, possíveis carências emocionais.

  • Trabalhar traumas relacionados ao relacionamento virtual e expectativas mal adaptadas.

  • Aprofundamento dos traumas de adoção e construção de vínculo.

  • Exploração do inconsciente familiar, revisitando narrativas sobre controle, amor e identificação.

  • Narrativa pessoal: ajudar o adolescente a ressignificar seu papel dentro da família.

TCC

  • Treinamento de regulação emocional: exercícios de respiração e relaxamento, especialmente em momentos de tensão.

  • Detectar pensamentos automáticos disruptivos e reformulá-los.

  • Ensinar assertividade: por exemplo, prática de “Eu me sinto [emoção] quando [situação]”, moldam conversas saudáveis.

  • Reestruturação cognitiva: identificação de pensamentos automáticos (ex.: “Eles me impedem de ser livre”) e substituição por pensamentos realistas.

  • Planilhas de monitoramento: pensamento/emoção/reação, ajudam a mapear e intervir.


Apoio a famílias em trauma

Infelizmente, quando o crime acontece, restam pais mortos e uma família devastada. Para os sobreviventes: irmãos, avós, tios, o acompanhamento psicológico é essencial. É necessário trabalhar o luto, a culpa, o trauma e o estigma social.

Nos casos em que o adolescente ainda está vivo, o tratamento psicológico e jurídico deve caminhar juntos. Muitas vezes, há espaço para reabilitação, ressignificação emocional e reconstrução familiar, quando possível.

  • Acolhimento sem culpa: choque e culpa são comuns, exigem escuta sem julgamentos. Os familiares sobreviventes precisam de suporte emocional pós-evento, sem estigmatização.

  • Terapia familiar: escrever nova história, reconstruir confiança, revisar dinâmicas internas com regras claras.

  • Apoio institucional: envolvimento de escola, CRAS, CAPS e apoio jurídico, se necessário.

  • Grupos de suporte: trocar experiências, reduzir isolamento na dor, normalizar emoções e aprender com quem viveu situações semelhantes.



Estes casos no Brasil, com famílias sem sinais visíveis de risco, nos lembram que:

  • A violência pode emergir rapidamente, mesmo em contextos estruturados.

  • A combinação de psicanálise e TCC oferece uma base rica: entendimento profundo do interno + desenvolvimento de habilidades práticas.

  • Prevenção eficiente exige vínculo, escuta ativa e atenção emocional no cotidiano familiar.

Adolescentes que matam seus pais não são “monstros” no sentido literal, são produtos de uma série de falhas emocionais, sociais e estruturais. Isso não justifica o crime, mas ajuda a compreendê-lo. E é a partir da compreensão que podemos começar a agir.

Como sociedade, precisamos reforçar o papel da educação emocional, da saúde mental preventiva e da escuta ativa dentro das famílias. Só assim evitaremos que um simples "não" vire motivo para uma tragédia.

 

Referências:

ABRAMOVAY, Miriam. Violências nas escolas. Brasília: UNESCO, 2012.

BECK, A. T. (2011). Terapia Cognitivo‑Comportamental: princípios e prática.

CORDIOLI, Aristides Volpato. Psicoterapias Cognitivas: Teoria e Prática. Artmed, 2008.

DEL PRETTE, Zilda & DEL PRETTE, Almir. Psicologia das relações interpessoais: Vivências para o trabalho em grupo. Petrópolis: Vozes, 2001.

DEL PRETTE, Zilda & DEL PRETTE, Almir. Habilidades sociais e desenvolvimento infantil. Vozes, 2011.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Imago, 1913.

KNOBEL, Maurício. Adolescência e Conflito. Casa do Psicólogo, 1999.

KNOBEL, Maurício. Adolescência: uma abordagem psicossocial. Casa do Psicólogo, 1999.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 5: As formações do inconsciente. Zahar, 1999.

LOMBARDI, A. (2021). Adoção, vínculo e adoção tardia.

MURRAY, J., CATALANO, R. F., & HAWKINS, J. D. Brain development during adolescence. Nature Reviews Neuroscience, 2015.

SKOWRON & BREEN (2012). Estudos sobre regulação emocional em adolescentes e prevenção de impulsos violentos.

TECHE, A. M. F. (2014). Parricídio: maus-tratos sofridos na infância.

YOUNG, Jeffrey et al. Terapia do Esquema: Guia de Técnicas Cognitivo-Comportamentais Avançadas. Artmed, 2008.

 
 
 

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