QUANDO O "NÃO" VIRA CRIME: POR QUE ALGUNS ADOLESCENTES MATAM OS PAIS?
- Priscila Stacul

- 4 de jul.
- 9 min de leitura

Nos últimos anos, temos acompanhado com perplexidade casos em que adolescentes tiram a vida dos próprios pais. A pergunta que paira no ar é: “como isso é possível?” Como um filho, criado por essas pessoas, pode cometer um ato tão brutal? Esse tema, por mais doloroso que seja, precisa ser debatido com seriedade, empatia e base científica, afinal, só assim poderemos compreender e prevenir essas tragédias.
Primeiro, é importante dizer: não existe uma única causa. O comportamento violento de um adolescente contra os próprios pais é resultado de uma teia complexa de fatores psicológicos, sociais, familiares e, por vezes, biológicos. Vamos entender melhor.
O que é o parricídio?
O parricídio ocorre quando um filho mata o pai ou a mãe. No Brasil, muitos casos envolvem adolescentes, frequentemente com conflitos impulsivos. Embora o fenômeno seja raro, sua gravidade exige atenção profunda às dinâmicas familiares e individuais.
Desenvolvimento emocional comprometido
Durante a adolescência, o cérebro ainda está em formação, especialmente o córtex pré-frontal, responsável pelo controle de impulsos, julgamento e empatia (MURRAY et al., 2015). Quando esse desenvolvimento emocional é prejudicado por traumas, negligência, ausência de limites claros ou excesso de permissividade, pode haver distorções graves na forma como o jovem lida com frustrações e regras.
Dinâmicas familiares disfuncionais
Famílias onde há violência doméstica, ausência de afeto, inversão de papéis (quando o filho “manda” nos pais), ou pais excessivamente autoritários ou ausentes, podem favorecer o surgimento de conflitos intensos. Em alguns casos, há também problemas psiquiátricos não tratados tanto nos filhos quanto nos pais (ABRAMOVAY, 2012).
Psicopatologias
Transtornos como o Transtorno de Conduta, Transtorno de Personalidade Antissocial ou até traços de psicopatia precoce podem estar presentes. Porém, vale ressaltar: a maioria dos adolescentes com esses diagnósticos não cometem crimes contra os pais. Esses transtornos apenas aumentam o risco, principalmente quando somados a outros fatores.
O que a Psicanálise vê por trás do parricídio?
A Psicanálise entende o ser humano como alguém movido por impulsos inconscientes, desejos reprimidos e conflitos com as figuras parentais. No caso do parricídio, duas obras são fundamentais:
Freud e o Complexo de Édipo
Freud, no início do século XX, descreveu no Complexo de Édipo a ambivalência afetiva da criança em relação aos pais: amor e ódio, desejo e culpa. Segundo Freud, todos nós, em algum momento da infância, passamos pelo desejo inconsciente de "eliminar" o pai ou a mãe como figuras que nos impedem de realizar nossos desejos (por exemplo, de atenção ou afeto exclusivo).
Na maioria das pessoas, esse desejo é simbolicamente superado, e a criança internaliza a autoridade parental, desenvolvendo respeito pelas regras sociais e morais.
No parricida, esse processo falha. O adolescente, ao invés de internalizar a lei e respeitar os limites, pode ver o pai ou mãe como um obstáculo real a ser eliminado, e não como um símbolo da ordem e da proteção.
Lacan e a Função Paterna
Jacques Lacan atualiza essa visão: não importa apenas o pai biológico, mas o "Nome-do-Pai", ou seja, a função simbólica de trazer regras, limites e organização ao psiquismo da criança.
Se essa função paterna falha (por omissão, ausência emocional ou fragilidade), o adolescente pode:
Não reconhecer nenhuma autoridade além de seus próprios desejos;
Rejeitar os limites impostos;
Buscar romper radicalmente com quem representa a lei, no caso os pais.
Resumindo a visão psicanalítica: O parricídio é a consequência extrema de um sujeito que não conseguiu elaborar o limite e a castração simbólica, permanecendo preso ao desejo de onipotência infantil.
E o que a TCC diz? (Com ênfase na Teoria dos Esquemas)
Na visão da Terapia Cognitivo-Comportamental, e principalmente da Terapia dos Esquemas, o parricídio não surge apenas por pensamentos distorcidos momentâneos, mas por esquemas emocionais disfuncionais profundamente enraizados desde a infância.
Esquemas são padrões emocionais e cognitivos amplos, que moldam como a pessoa vê a si mesma, os outros e o mundo. São aprendidos na infância, especialmente em contextos de relações familiares disfuncionais.
Esquemas que podem favorecer comportamentos extremos:
Abandono / Instabilidade: Crença de que as figuras importantes são imprevisíveis e vão deixar a pessoa.
Pode gerar raiva intensa diante da percepção de que os pais estão “contra” o adolescente.
Desconfiança / Abuso: Crença de que os outros vão te prejudicar, humilhar ou enganar.
O adolescente pode ver nos pais inimigos a serem combatidos.
Privação Emocional: Crença de que nunca terá amor, cuidado ou compreensão.
Gera frustração crônica, ressentimento e comportamentos vingativos.
Controle / Submissão: Sentimento de que sua vida é controlada pelos outros e de que não tem direito à autonomia.
Pode gerar explosões de revolta extrema.
Grandiosidade / Insuficiência de Limites: Crença de que suas necessidades são mais importantes que as regras.
Aqui surge o perfil narcisista, que não aceita frustração e acredita ter direito absoluto ao que deseja.
Como a TCC e a Terapia dos Esquemas tratam isso?
Reestruturando crenças disfuncionais: mostrando que o mundo não gira em torno do desejo imediato do adolescente.
Treinando tolerância à frustração: ensinando que a dor emocional pode ser suportada sem atitudes extremas.
Desenvolvendo empatia: mostrando o impacto que suas atitudes têm sobre os outros.
Trabalhando habilidades sociais: comunicação, resolução de conflitos e estratégias para lidar com regras e limites sem agressividade.
Em resumo: Diferenças nas abordagens
Psicanálise | TCC / Esquemas |
Enfoque nos desejos inconscientes e falhas na simbolização da autoridade | Enfoque em pensamentos disfuncionais e padrões emocionais mal formados |
Destaca a importância da função paterna como mediadora do desejo e da lei | Destaca como experiências negativas moldam crenças e reações impulsivas |
Busca interpretar o inconsciente e ressignificar o desejo | Busca reestruturar pensamentos e desenvolver habilidades práticas |
Como isso ajuda na prevenção?
Pais e cuidadores, psicólogos e professores podem:
Fortalecer o papel de autoridade emocional equilibrada: nem autoritária, nem permissiva.
Trabalhar o diálogo e a validação emocional: os sentimentos do adolescente precisam ser reconhecidos, mas seus comportamentos inadequados, corrigidos.
Identificar precocemente padrões disfuncionais: comportamentos de crueldade, manipulação ou falta de empatia são sinais de alerta.
Buscar psicoterapia: seja pela psicanálise ou pela TCC, o tratamento psicológico precoce pode evitar tragédias.
Casos reais ocorridos no Brasil
Caso 1:
Em 21 de junho de 2025, em Itaperuna (RJ), um adolescente de 14 anos assassinou os pais e o irmão de 3 anos enquanto dormiam. O crime só veio à tona em 25 de junho, quando a avó registrou o desaparecimento da família. A motivação: os pais proibiram que ele viajasse para Mato Grosso do Sul para encontrar virtualmente sua namorada de 15 anos.
Usando a arma do pai, guardada embaixo do colchão, ele matou os três e ocultou os corpos em uma cisterna, com sinais de tentativa de destruição de evidências. Em áudios e declarações, alegou ter agido para evitar sofrimento ao irmão. Também pesquisou online como acessar o FGTS do pai falecido.
Ele foi apreendido e internado provisoriamente por 45 dias no sistema socioeducativo.
Por que esse caso choca
Família estruturada: sem histórico de violência ou disfunções evidentes.
Gatilho aparentemente banal: um conflito sobre um encontro amoroso.
Planejamento e frieza: o jovem agiu durante a madrugada, calculando a ação, e busca pelo FGTS, sinais de premeditação e interesse financeiro.
Isso desmistifica a ideia de que apenas famílias problemáticas geram casos graves, pois a violência pode surgir onde menos se espera.
Possíveis fatores psicológicos e explicações
Impulsividade e imaturidade emocional: A incapacidade de tolerar frustrações pequenas leva a explosões intensas. Em adolescentes com capacidade limitada de autorregulação, isso pode resultar em ações extremas.
Relações virtuais e idealização: O envolvimento com uma parceira virtual desde a infância cria expectativas emocionais não ajustadas à realidade familiar e pessoal, gerando frustração ao ser impedido.
Ansiedade de separação e identidade: O jovem pode ter interpretado a proibição como uma violação de identidade e autonomia, e a morte da família como forma de “libertação”.
Teoria psicanalítica
Inadequada internalização das figuras parentais: sem vínculo simbólico forte, os pais tornam-se “inimigos” internos facilmente atacáveis.
Inexistência de limite edipiano: adolescente não elaborou conflitos com figuras parentais, agindo impulsivamente.
Ato como identidade: o homicídio aparece como um ato extremo para afirmar autonomia e marcar ruptura.
Psicologia Cognitivo-Comportamental (TCC)
Crenças distorcidas: o adolescente pode ter pensado “me bloqueiam de viver minha vida”.
Falta de regulação emocional: ausência de estratégias para lidar com raiva e descontrole.
Ações alternativas inexistentes: sem repertório de resolução de conflitos, a violência surge como solução.
Caso 2:
Em 24 de maio de 2024, na Taquara (Jacarepaguá, RJ), um adolescente de 16 anos, filho adotivo de um casal amoroso e sem histórico de violência, matou os pais com um martelo, saiu de casa “para lanchar” e depois incendiou o quarto onde estavam os corpos, confessando o ato às autoridades.
Apesar da aparência de estabilidade familiar:
O crime ocorreu após uma simples discordância: os pais não permitiram que faltasse à escola para descansar antes de uma aula de jiu jitsu.
Ele foi adotado em 2014, e seus irmãos adotivos não mantinham contato há anos.
Vizinhos relataram que a convivência “não era normal”, apesar de o casal ser visto como carinhoso.
Esse cenário mostra que famílias estruturadas podem esconder tensões profundas, negligenciadas até transformarem-se em violência letal.
Possíveis gatilhos e explicações psicológicas
Impulsividade extrema: o porquê de o jovem agir de forma tão violenta após “apenas uma discussão”.
Adolescência e identidade: busca por autonomia e dificuldades na transição para independência.
Aceitação social: o conforto em sair para lanchar mostra um comportamento dissociado da violência cometida.
Fracasso na internalização paterna: o vínculo parental não foi suficientemente consolidado, tornando o imaginário dos pais vulnerável à raiva inconsciente.
Falha na elaboração do furo edipiano: ausência de simbologia e processamento emocional pode gerar explosões violentas como forma de “marca” ou afirmação poderosa.
Crenças disfuncionais: pensamentos como “meus pais me controlam demais” precisam ser identificados e reformulados.
Dificuldades na regulação emocional: falta de estratégias para lidar com irritação e frustração imediata.
Ausência de treino comportamental: inexistência de habilidades de comunicação assertiva em momentos de conflito.
Prevenção: como os pais podem agir.
Não existe fórmula mágica, mas algumas atitudes podem proteger emocionalmente os adolescentes:
Diálogo aberto e envolvente: construam narrativas de vida juntos, inclusive virtuais. Ofereça um espaço seguro e sem julgamentos.
Esteja presente emocionalmente: não basta dar comida e escola boa. É preciso ouvir, acolher, conversar e entender os sentimentos dos filhos.
Uso de regras com lógica e afeto: explicar motivação por trás de cada decisão, mesmo negativa. Dizer “não” também é uma forma de amor. Crianças e adolescentes precisam de referência, estrutura e regras. Regras claras, mas voltadas ao fortalecimento, não à simples punição.
Promoção de habilidades socioemocionais: ensinar regulação emocional, resolução de conflitos, empatia e comunicação assertiva.
Monitoramento de relacionamentos virtuais: acompanhar sem invadir, conversar sobre limites e riscos.
Atividades conjuntas: fortalecer identidade familiar com momentos de conexão emocional.
Captação de sinais de alerta: sinais como isolamento, agressividade verbal, alterações abruptas de humor, agressividade extrema, crueldade com animais, falta de empatia ou prazer em provocar dor devem ser levados a sério.
Modelagem saudável de emoções: demonstre como regular emoções (respiração, pausa antes de reagir, linguagem calma).
Incentivo ao autocuidado emocional: introdução à meditação, atividades físicas, hobbies não relacionados a dispositivos digitais.
Não terceirize a educação emocional: celular, escola ou internet não substituem o papel dos pais.
Cuide da sua saúde mental: pais emocionalmente desequilibrados têm mais dificuldade em oferecer uma base segura aos filhos.
Intervenção profissional
Psicanálise
Explorar vínculos parentais, formação de identidade, possíveis carências emocionais.
Trabalhar traumas relacionados ao relacionamento virtual e expectativas mal adaptadas.
Aprofundamento dos traumas de adoção e construção de vínculo.
Exploração do inconsciente familiar, revisitando narrativas sobre controle, amor e identificação.
Narrativa pessoal: ajudar o adolescente a ressignificar seu papel dentro da família.
TCC
Treinamento de regulação emocional: exercícios de respiração e relaxamento, especialmente em momentos de tensão.
Detectar pensamentos automáticos disruptivos e reformulá-los.
Ensinar assertividade: por exemplo, prática de “Eu me sinto [emoção] quando [situação]”, moldam conversas saudáveis.
Reestruturação cognitiva: identificação de pensamentos automáticos (ex.: “Eles me impedem de ser livre”) e substituição por pensamentos realistas.
Planilhas de monitoramento: pensamento/emoção/reação, ajudam a mapear e intervir.
Apoio a famílias em trauma
Infelizmente, quando o crime acontece, restam pais mortos e uma família devastada. Para os sobreviventes: irmãos, avós, tios, o acompanhamento psicológico é essencial. É necessário trabalhar o luto, a culpa, o trauma e o estigma social.
Nos casos em que o adolescente ainda está vivo, o tratamento psicológico e jurídico deve caminhar juntos. Muitas vezes, há espaço para reabilitação, ressignificação emocional e reconstrução familiar, quando possível.
Acolhimento sem culpa: choque e culpa são comuns, exigem escuta sem julgamentos. Os familiares sobreviventes precisam de suporte emocional pós-evento, sem estigmatização.
Terapia familiar: escrever nova história, reconstruir confiança, revisar dinâmicas internas com regras claras.
Apoio institucional: envolvimento de escola, CRAS, CAPS e apoio jurídico, se necessário.
Grupos de suporte: trocar experiências, reduzir isolamento na dor, normalizar emoções e aprender com quem viveu situações semelhantes.
Estes casos no Brasil, com famílias sem sinais visíveis de risco, nos lembram que:
A violência pode emergir rapidamente, mesmo em contextos estruturados.
A combinação de psicanálise e TCC oferece uma base rica: entendimento profundo do interno + desenvolvimento de habilidades práticas.
Prevenção eficiente exige vínculo, escuta ativa e atenção emocional no cotidiano familiar.
Adolescentes que matam seus pais não são “monstros” no sentido literal, são produtos de uma série de falhas emocionais, sociais e estruturais. Isso não justifica o crime, mas ajuda a compreendê-lo. E é a partir da compreensão que podemos começar a agir.
Como sociedade, precisamos reforçar o papel da educação emocional, da saúde mental preventiva e da escuta ativa dentro das famílias. Só assim evitaremos que um simples "não" vire motivo para uma tragédia.
Referências:
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